“A descarbonização terá um preço e terá de ser justa”, Salvador Caetano Auto
Com um longo percurso ligado à liderança de várias empresas do setor automóvel, Miguel Fonseca está desde maio à frente da área de Mobilidade e Transição Energética da Salvador Caetano Auto. Recentemente, participou no Fórum da DPAI/ACAP como orador, onde apresentou um painel cujo tema foi “Permanecer competitivo num ambiente de mudança”, tendo explicado quais são os desafios que acredita que serão colocados ao setor automóvel e quais as grandes saídas que esta indústria pode encontrar para se reinventar. Estivemos à conversa com o executivo para conhecer melhor a sua perspetiva
Licenciado em engenharia mecânica, Miguel Fonseca iniciou a carreira em 1987, na Citroën Portugal. Dois anos depois, passou para a Ford Portugal, tendo transitado para a Ford Europa em 1992 e, em 1995, para a Ford Espanha. Em 1998, regressou a Portugal para integrar a Fiat como Presidente e CEO. Entre 2012 e 2015, foi Presidente da Toyota Financial Services para a região da Europa e África. Entre 2019 e 2020 foi responsável pela Toyota Latin America & Caribbean, na área de Sales & Marketing, Service and Business Administration. Depois de várias décadas a viver no estrangeiro, regressou a Portugal e em maio de 2024 assumiu o cargo de CEO da área de Mobilidade e Transição Energética da Salvador Caetano Auto. A experiência que acumulou ao longo da carreira traz-lhe uma perspetiva muito clara sobre a atual situação do mercado automóvel, sendo capaz de, de forma pragmática, apontar quais serão as principais dificuldades que o setor encontrará nos próximos tempos, assim como as oportunidades que estarão em cima da mesa para quem as conseguir aproveitar.
Mudanças no mercado automóvel
Para Miguel Fonseca, os fatores conjugam-se para uma rápida disrupção do mercado automóvel. O modelo tradicional de negócio, como o conhecemos, está a mudar, devido a três principais fatores: “A eletrificação, perseguindo as metas de CO2 associadas com a descarbonização; a regulamentação e incentivos a novas formas de mobilidade, principalmente nas cidades, e a tecnologia, em particular os avanços de Inteligência Artificial, Digitalização, Conetividade e a da Condução autónoma nos carros”. Ainda assim, apesar desta velocidade que se vai imprimindo à indústria, com metas firmes estabelecidas – a partir de 2025 as emissões permitidas passam a ser de 93 gramas por quilómetro e em 2030 serão 49 gramas – o executivo da Salvador Caetano antevê que poderá não haver “viabilidade económica” para as alcançar. A seu ver, “a introdução de mais BEV (elétricos a bateria) mais acessíveis vai acelerar a redução do CO2 emitido pelos veículos, o que corresponde às ambições da regulamentação”.
No entanto, Miguel Fonseca alerta para o facto de a velocidade da transição “não dar espaço à amortização de investimentos antes realizados, nem à transição de muitos fornecedores pertencentes ao supply chain”. Por outro lado, depois da adoção de elétricos pelos «early-adopters» (famílias com vários carros, com poder económico muito acima da média e possibilidade de carregar o carro em casa ou no trabalho), “será muito mais desafiante a fase de massificação, não pelo lado da oferta, mas sim da procura”, pois “o mass market precisa de carros mais baratos e necessitará utilizar infraestrutura pública para carregar – e a preços acessíveis”. Isso faz com que os construtores tenham que “gerir o mix de produção limitando a produção de carros a combustão – o que farão em último recurso já que parará fábricas ou turnos de produção com efeitos no emprego e estabilidade do eco sistema industrial”.
A tecnologia vive uma aceleração nunca antes vista, com um impacto notório no setor automóvel e, consequentemente, nos serviços que lhes estão associados. Segundo Miguel Fonseca, “a principal evolução está a acontecer a nível da capacidade de computação, comunicação e tecnologia autónoma – com a IA presente em todas as frentes. O setor de reparação irá sofrer com o crescimento dos BEV (menor manutenção por km percorrido) e das ajudas à condução mesmo antes dos autónomos (menos acidentes, menores reparações de chapa) – embora por razões que naturalmente se celebram. Os impactos não são ainda muito visíveis, mas a sua evolução é inevitável”, afirma.
Novos paradigmas
Na apresentação que fez no Fórum da DPAI/ACAP, Miguel Fonseca mostrou um gráfico que mostrava a Tesla como “a única marca que está no futuro, pois tem uma arquitetura elétrica/eletrónica centralizada, ao contrário das outras marcas que tem uma arquitetura descentralizada”, um comentário que o próprio subscreve, explicando que a Tesla “teve a vantagem (para além do mérito) de começar a desenvolver os seus carros já bem dentro do seculo XXI, sem o legado dos demais fabricantes. Para além disso tomou a corajosa decisão de só fabricar carros elétricos, e essa decisão permitiu-lhes abordar a conceção do carro de forma inovadora em particular nos aspetos de plataforma E/E e do conceito do chassis. Digamos que o carro está desenhado à volta da plataforma de SW, e isso é radicalmente diferente dos construtores tradicionais”. Ao mesmo tempo, os construtores chineses que tiveram uma abordagem semelhante à da marca de Elon Musk, “estarão atualmente em linha ou pouco atrás da Tesla. Mas o seu ritmo de desenvolvimento é notável, em particular daqueles que não têm o legado a pesar, como os construtores tradicionais”, diz.
Eletrificação do parque
Sendo que os veículos elétricos em Portugal são apenas 1,3% do parque automóvel, o nosso entrevistado calcula que “tardaremos 15 anos a substituir três milhões de carros”, ou seja, para que o parque de veículos elétricos seja maior do que o parque de veículos a combustão. O mesmo acredita que “até 2028 deveremos continuar a vender mais ICE que BEV, mas a partir daí caminharemos para 90/100% de BEV em 2035, mas os mais de 50% de BEV no parque circulante deverão ser alcançados já na década de 40”. Neste momento, o crescimento dos veículos elétricos em Portugal segue em contraciclo com o resto da Europa, um fenómeno que Miguel Fonseca sugere dever-se à “solução Mobi-e de rede interoperável”, que dá ao consumidor “vantagens claras na escolha da energia que quer consumir, e onde utilizar o serviço de carga”. Além disso, salienta que esta interoperabilidade “habilita soluções de intercâmbio de dados, tão importantes como o preço da energia, o estado do carregador etc… o que permite a gestão de planos de viagem muito mais efetivos. A rede Mobi-e precisa de evoluir, mas é um trunfo fundamental para a mobilidade elétrica em Portugal. As soluções de agregação ou pagamento com terminais de crédito são positivas, mas não replicam as vantagens para o consumidor oferecidas pela Mobi-e”, defende.
Na sua opinião, os combustíveis sintéticos ou biocombustíveis e o hidrogénio serão “parte da equação” para se atingir as metas de descarbonização, “mas, nos próximos dez anos, não serão uma alternativa com volume suficiente para reduzir significativamente o peso dos BEV no esforço de descarbonização”. Isto porque “os combustíveis sintéticos serão caros, os biocombustíveis têm um teto até competirem com a alimentação, com custos também elevados, e o hidrogénio apresenta desafios de custo e distribuição. Sobretudo se na produção destes combustíveis se aplicar – como se necessita – energia renovável”. Miguel Fonseca entende que a aplicação do hidrogénio “será positiva em particular no transporte pesado por estrada, e isso irá desenvolver a infraestrutura e tornar o seu custo competitivo”. Contudo, “ainda demorará algum tempo até impactar o mercado de passageiros em volume significativo” e foca-se na importância de que a produção de energia elétrica para os BEV seja de fontes renováveis: “Neste momento, menos de 25% da energia elétrica na Europa provém de fontes renováveis ou menos de 50% se incluirmos a Nuclear como energia limpa. O roadmap de produção de energia renovável não está a acompanhar as metas estabelecidas pela UE, nem o próprio roadmap de instalação de infraestutrura de carregamento”, alerta, explicando que “aquilo que os fabricantes têm dito, e corretamente, a meu ver, é que não se deve forçar um lado a um esforço e velocidade que pode ser terminal, sem que o todo evolua em harmonia – para que o esforço faça sentido até do ponto de vista ambiental”.
Uma nova mobilidade
A contribuir para esta nova forma de olhar para a mobilidade… fique a par do artigo completo na edição impressa do Jornal das Oficinas de dezembro 2024/janeiro 2025, aqui.