Bem-vindos a um novo mundo!
Faz exatamente quatro anos, escrevi neste mesmo jornal na rúbrica visu, o seguinte: “A indústria automóvel enganou-nos mais uma vez. Este, poderá ser o título de um jornal em 2035”. Só me enganei na data
Desde finais do ano passado, que nos media, nomeadamente a televisão, tem vindo a acusar a indústria automóvel europeia de ser responsável pela situação atual em que se encontra e pelo insucesso das viaturas elétricas. A bem do rigor e da verdade, apenas posso afirmar que é lamentável que se passe esta ideia para os cidadãos europeus.
Europa e a nova geopolítica mundial
A Europa a que pertencemos, está emparedada entre os Estados Unidos, China e Rússia. A sobrevivência desta Europa, passará seguramente por uma União Europeia bem mais unida e solidária que aquela que temos assistido nos últimos anos, e, talvez com uma configuração que passe desde o Canadá até à Turquia, com estatutos especiais para o Reino Unido, México e Marrocos. Poderá parecer utópico, mas o projeto europeu quando nasceu no pós-guerra também era para muitos uma utopia e ele foi-se desenvolvendo até hoje. Não é seguramente perfeito e tem desafios gigantes pela frente perante este novo mundo.
Europa e as indústrias automóvel e militar
Se durante os últimos anos muito ouvimos falar de sustentabilidade ambiental (Green Deal) e digitalização, a verdade é que a situação atual mostra uma estratégia de investimento estratosférico na militarização da europa. Seguramente iremos ter fabricantes de peças, fabricantes de automóveis, fabricantes de viaturas pesadas, e outros que conhecemos na nossa indústria, a serem chamados para esta nova indústria militar europeia. Temos fábricas de automóveis na europa sem viabilidade económica em virtude do disparate legislativo das viaturas elétricas, que seguramente serão reconvertidas para esta nova indústria.
Estados unidos e as indústrias civis e militares
Será do conhecimento de poucos, que a Boeing (concorrente da europeia Airbus) tem como principal negócio, o desenvolvimento aeroespacial e de defesa (aviões militares). Outro exemplo é a conhecida marca americana de turbos, a Garret, que até há pouco tempo era detida pela Honeywell. Este grupo, para além de muitas outras áreas de negócio, desenvolve sistemas eletrónicos para aviões de combate americanos. Isto mostra como as indústrias ditas civis, se misturam com as indústrias militares, sem que muitas vezes seja do conhecimento do cidadão comum.
Impacto do novo mundo, no setor automóvel europeu
Uma coisa é certa, tudo o que está a acontecer no mundo irá ter um grande impacto na indústria automóvel como a conhecemos, e, por inerência, o setor da distribuição de peças e de reparação automóvel, também será afetado. Será razoável considerar, perante a situação atual do mundo, que alguns fabricantes de peças, deslocalizem as suas operações de produção, de territórios que possam ser considerados hostis ao comércio livre, ou com elevado risco de conflito bélico, para outras regiões com menor risco. Isto é dizer que as cadeias de distribuição vão mudar e muito, nos próximos anos. Algumas regiões da Europa, poderão vir a ser estratégicas para novamente albergar indústria e nomeadamente indústria relacionada com a defesa do território. Mas quando falamos de competitividade, sabemos que é normal a procura de outras regiões, onde a produtividade seja maior e os custos de produção sejam mais baixos. O norte de Marrocos está pleno de fábricas de automóveis que foram deslocalizadas da Europa, nas últimas décadas. Também o norte de África tem muitas fábricas de peças automóvel, que diariamente são consumidas por esta europa fora. A proximidade geográfica e a facilidade logística, em muito tem ajudado no desenvolvimento destas atividades.
O aftermarket europeu neste novo mundo
Ao contrário da perceção da generalidade das pessoas, o nosso custo energético ao nível da eletricidade, é dos mais baixos da Europa, principalmente para os consumidores não-domésticos (fonte: ERSE/ Eurostat). Numa nova indústria pesada a surgir na Europa como a do armamento, a energia com baixo custo, deveria colocar-nos numa posição de grande apetência para receber alguma desta indústria. Mas temos para além de outros fatores um que é estrutural, e depende também dos empresários do nosso país: Produtividade. A nossa produtividade por hora trabalhada é das mais baixas da Europa (fonte: Eurostat/ INE/ Pordata). Traba- lhamos muitas horas, produzimos pouco e com baixo valor adicional. O maior projeto industrial do nosso país chama-se Autoeuropa. É bom recordar que umas das primeiras instalações a serem criadas naquela fábrica foi o centro de formação. E, anos antes do início da laboração da fábrica, o grande foco daquela unidade foi formar pessoas para que estivessem capacitadas para trabalhar numa fábrica de automóveis moderna. Não existem muitas empresas disponíveis para fazerem este investimento a longo prazo. Uma aposta na produtividade. Não é trabalhar mais, mas sim trabalhar melhor.
O aftermarket europeu neste novo mundo
O Aftermarket europeu está dominado por grandes grupos de distribuição de peças. Estes são na maioria dos casos detidos parcialmente por fundos de investimento, que consideram este setor como um setor de refúgio (sem grande retorno do capital investido, mas com risco muito reduzido de perdas). Estes fundos têm como missão remunerar o máximo do capital do investidor e por isso se outras áreas de negócio caem, a pressão sobre os investimentos de refúgio é maior. Sendo assim expetável que a pressão do lucro nestes grupos de distribuição, venha a ser intensificada, ficando toda a cadeia de distribuição, também sob maior pressão económica e principalmente financeira. Traduzindo isto na prática, é dizer que estes grupos farão maior pressão sobre fabricantes de peças (pressão para obtenção de mais margem e melhores condições financeiras), sobre o retalho (pressão sobre vendas, stocks, redução de serviços gratuitos e aumento da disciplina de crédito). Quando o retalho de peças estiver sob esta pressão, as oficinas sentirão este efeito de imediato, nomeadamente o da disciplina de crédito em países como o nosso, que esta disciplina é parca.
Algo que será muitíssimo valorizado neste novo mundo, será a inteligência do negócio aftermarket na Europa. À semelhança de outros países como Israel ou Coreia do Sul, esta inteligência civil, será muito útil na indústria da defesa. Os dados civis, serão transformados em informação e trabalhados por inteligência, que seguramente nos próximos anos, será trabalhada também por inteligência artificial, com o objetivo de promover a segurança dos cidadãos europeus. Iremos ter muitos debates relativamente aos direitos e garantias fundamentais das pessoas e sobre o RGPD versus segurança das pessoas, nos próximos anos.
O aftermarket português neste novo mundo
Portugal não sendo um país da “Linha da Frente”, pode estar sempre atento ao que acontece em outros mercados relevantes do aftermarket e perspetivar como estas mudanças vão chegar até nós. Este intervalo temporal, permite aos players do nosso sector que estão atentos, preparar o seu negócio se tiverem capacidade para tal. Um dos principais desafios das empresas, na sua capacidade de mudança rápida às alterações do mercado, são as pessoas. Os empresários necessitam de se capacitar como gestores, onde a área de gestão de recursos humanos, será um ponto crítico. Tornar o nosso sector novamente atrativo para as pessoas, nomeadamente para as gerações mais novas, é uma questão de sobrevivência para muitas empresas do sector a curto prazo e do aftermarket a médio prazo.
A formação não pode ser apenas um trunfo para fidelização de clientes. A formação que o nosso sector necessita, devia ser considerada como um desígnio de todos os players do aftermarket, e implementada com a força de um sector que emprega muita gente, que serve o país com pagamento de vários impostos e taxas, e que permite ao consumidor ter uma opção de escolha mais barata, mais cómoda, mais diversificada e mais sustentável do ponto de vista ambiental.
Conclusão
Nunca pensei vir a escrever um artigo de opinião, onde a indústria militar fizesse parte do mesmo. Nunca pensei que fosse necessário e talvez possível, ter uma União Europeia com países fora do continente europeu. Nunca pensei que a inteligência do nosso negócio, poderia ser útil para a nossa defesa em solo europeu. Falo em mudança há vários anos… mas isto não é mudança. Isto é disrupção e da mais violenta que poderíamos imaginar. Mas, como sempre, em todas as crises existem oportunidades. Elas existem e são muitas. Se o nosso país as vai aproveitar?!
Espero que pelo menos, o aftermarket consiga fazer desta disrupção, um momento para sair da zona de conforto e fazer o que tem de ser feito.
Artigo de opinião escrito por Dário Afonso, diretor geral da ACM – Autocoach Management.